A Caçadora

20 out

Essa foi a minha resposta a um pedido feito para um jogo de RPG, no cenário de Golarion, da Pathfinder (embora usando as regras do D&D 5ª edição). Tínhamos que pensar um desafio a ser superado por nossos personagens. Aproveitei para explicar narrativamente algumas características da raça da minha personagem – uma androide – e traços de personalidade descritos em ficha.

Créditos da imagem: DevBurmak

89d9b34b9261c72dc27d0d370364a9ef

Já era o terceiro dia enclausurados, e o vento continuava uivando lá fora. Do lado de dentro do abrigo improvisado, as coisas não iam muito bem. A chama da fogueira minguava, produzindo mais fumaça do que calor. Val, a menina mirrada e esquálida, finalmente dormia com uma respiração difícil depois de uma noite difícil. No inverno, a saúde fragilizada dela sempre piorava. Quando estavam em uma casa calefada, porém, podiam manter cuidados apropriados. Ali, ela tinha sorte de estar dormindo em um lugar seco.

Cibylla analisava a situação e os prospectos não eram bons. O mau tempo repentino pegou os três de surpresa, que pretendiam chegar a Tocha antes do inverno começar. Os suprimentos começavam a rarear, e se não conseguissem chegar em alguns dias, havia riscos de os três minguarem de fome. Passou pela sua cabeça a mórbida curiosidade da desnutrição. Como ela se sentiria se estivesse às portas da desativação por falta de nutrientes?

Lembrou-se das vezes em que foi desligada e estremeceu. Não, não deveria ser algo que merecesse sua atenção. Se muito, que servisse como o estímulo final para enfrentar o frio. O homem que agora respondia por Konir Baine olhava pela entrada da gruta. Cansaço nos olhos e no corpo, e algo mais que ela não conseguia entender. Algo que pesava nos ombros do homem, deixava-os encurvados, como nos tempos de antes, quando ambos respondiam à Liga Técnica de Numeria. Cibylla ainda não tinha uma palavra para aquele sentimento que via.

— Nossos suprimentos não vão durar mais do que dois dias – a mulher falou em seu tom invariável de voz.

— Eu ainda sei contar, Cibyl.

O apelido. Usado em raros momentos de intimidade entre os três, ou quando ele queria ser condescendente. Normalmente acontecia quando ele começava a ficar impaciente. Konir Baine estava descontente, embora a sutileza da mensagem não tenha atingido Cibylla como ele pretendia.

— Não insinuei que você tivesse perdido suas faculdades intelectuais, Konir. Era apenas uma análise factual, para concluir que eu sairei para caçar.

— Eu não quis… – desistindo de se explicar, ele apenas sorriu sem forças. Ainda esquecia que Cibylla não conseguia captar todas as nuances de tom, as particularidades do discurso humano. Ela só estava lidando com a situação na maneira que conhecia. – Mas como você pretende caçar alguma coisa nesse frio? Você faz alguma ideia do que fazer lá fora?

— Não. Mas entre nós três, tenho matematicamente mais chances de sucesso. Uma vez que a neve parou de cair, julgo que não devo me perder tão facilmente. Voltarei no fim do dia, com ou sem comida. Fique atento.

O estudioso não tinha argumentos para refutá-la. Apenas deu ombros, despediu-se com um redundante “tome cuidado” e viu a forma humaoide, alta e esbelta, de pele tão pálida quanto a neve e cabelos vermelho-vivo partir para o vento frio e cortante. Ele já sentiu medo várias vezes em sua vida, especialmente desde que deixara a Liga Técnica, mas sempre teve a sensação de que havia alguma coisa sob seu controle. Mas diante de um destino incerto, o horizonte se preenchendo de branco, um frio castigante e da comida no fim, ele passava a questionar as suas chances.

*****

Cibylla seguiu, afastando-se da gruta e rumando em direção a uns bosques que haviam encontrado no dia em que se abrigaram. Os pinheiros, que reconheceu pelo seu formato característico, e outras árvores de folhagem sempre verde estavam cobertos de neve. O sol brilhava timidamente, e ao tempo em que ela apreciava o fato de não ter que enfrentar o granizo caindo sobre sua cabeça e suas costas, a neve sob suas botas começava a derreter. Aparentemente três dias de nevasca não são o bastante para ela se tornar firme e não ceder sob seu peso.

Com olhos opacos, ela olhava ao redor. Atenta, ela procurava por algo, embora não soubesse exatamente o quê. Recostou-se em um tronco derrubado pelo vento forte, as raízes viradas para o céu como vários braços que tentaram se agarrar a um desfiladeiro, e sem saber exatamente como, soube que aquela árvore teria uma boa lenha para a fogueira. Passou as mãos cobertas por luvas pelos galhos secos e sem folhas – ela já estava morta antes que a ventania desse seu último golpe. Desde que cortasse apenas os galhos que não dormiram no gelo, poderia aproveitá-los.

Aparando a madeira de maneira diligente, outros pensamentos ocorreram a Cybilla. Alguma daquelas árvores teriam frutos secos, que poderiam ser assados e comidos durante a viagem sem esforço. Se uma vegetação tão frondosa havia se formado ali, poderia dar a sorte de encontrar tocas de alguns animais pequenos, embora seus rastros fossem mais complicados de encontrar, pois eles deveriam estar abrigados do frio. Se não encontrasse os refúgios, sabia como preparar algumas pequenas armadilhas. Assim, ela, Konir e Val poderiam passar mais um dia, aquecidos e alimentados de vegetais, e depois ela coletar alguma carne para a viagem.

A androide não sabia como aquelas coisas lhe chegaram à mente, mas quando terminou com a madeira, amarrou-a em um lugar alto o bastante para que não ficasse úmida no chão. Com uma postura que não era exatamente a sua, mas lhe veio de modo natural, Cibylla andou pelos caminhos emaranhados do bosque. Havia memorizado a direção do sol, e fez questão de deixar marcas de sua passagem nos galhos de árvore mais baixos. Instintivamente, evitou as copas mais pesadas, pois já que a neve começava a derreter, não queria ser surpreendida por pedaços de gelo caindo em sua cabeça. Até que ela encontrou rastros, quase como se refazendo seus passos, e não eram de pequenos animais.

Calçados. Botas um pouco maior do que as suas e recentes. Quem estaria andando tão longe de qualquer habitação em um inverno? Um caçador que, como eles, foi pego de surpresa pela neve? Mas quem iria tão longe de qualquer povoado para caçar? A não ser que essa pessoa tivesse alvos muito específicos em vista.

Há algumas semanas, os três fugiram às pressas de Chesed, onde nos últimos meses viveram uma vida relativamente tranquila. Na maior cidade de Numeria, os três conseguiram passar razoavelmente despercebidos. O Assistente Pauldris Grey cortou os cabelos, tingiu-os e virou Konir Baine; Val se passava por sua filha e aprendiz, e Cibylla, outrora Ajuda nº C-42, assumiu um novo nome. Quando se preparavam para passar seu segundo inverno na cidade, os cartazes de procurado começaram a aparecer, oferecendo recompensas absurdas em troca da captura de Konir/Pauldris, ou de provas de sua morte. Nenhuma das perspectivas a animava. Eles não tiveram escolha que não fugir às pressas.

Seguiram o Rio Selen com uma caravana de pessoas que não faziam muitas perguntas, desde que nenhum deles se provasse um fardo. Eram também pessoas animadas, sempre dispostas a contarem histórias, pertencentes a eles ou não. Esperavam que a velocidade de sua fuga tivesse espantado quaisquer caçadores de recompensas, mas aquelas evidências provavam o contrário. Alguém muito determinado estava bem próximo de encontrá-los, e Cibylla não permitiria aquilo.

Com cuidado, ela levantou o capuz e seguiu os rastros. Evitando fazer barulho, calculou bem seus próprios passos, pois qualquer movimento em falso poderia entregar sua posição. Não soube precisar o tempo que caminhou pela vegetação, mas não importava.

Seus movimentos eram calculados, quase tão frios quanto o vendo forte que balançava a folhagem. Se a postura cuidadosa no início da caminhada lhe parecia estranha, agora tudo lhe era natural. Como um livro antigo, encontrado em meio a uma estante empoeirada, que você começa a ler apenas para lembrar que conhecia a história de muito tempo atrás. Quando?

Chegou ao acampamento. Alojada contra a encosta da margem de um córrego, uma tenda de couro grosso. Restos de uma fogueira, protegidos da neve com um círculo de pedras. Do outro lado da corrente de água, um cavalo não a notara, distraído com uma porção de comida. Nenhum outro barulho além do vento, da água, e do ocasional relinchar do animal. Quem quer que fosse aquela pessoa, não estava em casa. Isso deu a Cibylla a oportunidade de confirmar suas suspeitas.

Primeiro, afastou o animal, para que ele não entregasse sua posição. Uma sela de boa qualidade, arreios hidratados e bem cuidados. Era alguém experiente. O quadrúpede, porém, estava cansado e arfava pesadamente, e não ofereceu resistência quando foi guiado um pouco mais para longe, onde haveria mais comida.  Na tenda, encontrou alguns suprimentos que lhe seriam úteis, e a prova que estava esperando: cartazes com o rosto de Pauldris Grey estampado. Cibylla não deixou de se espantar com a diferença entre as duas pessoas. Olhos encavados, com grandes olheiras, e uma barba desgrenhada. Ele já fora tão velho assim? Teria ela mudado tanto também?

Seu primeiro pensamento foi o de pegar os suprimentos que pudesse e fugir, talvez até o com animal. Mas não, isso seria um erro. Cibylla não sabia montar, e deixaria um rastro muito fácil de seguir. Acabaria entregando a posição de todos, possibilitando que aquele indivíduo os surpreendesse quando estivessem vulneráveis. Ela iria preparar uma armadilha.

*****

No alto de uma árvore, ela resetava o arco com cuidado. A figura seguiu os passos do cavalo, como Cibylla esperava. À pouca distância, pôde analisar melhor o seu alvo. Altura mediana, passadas cuidadosas, compleição física acima da média. Uma barba espessa cobria-lhe o rosto, mas uma cicatriz profunda descia-lhe pela face esquerda, ficando oculta por um tapa-olho. Ele andava com a experiência de anos de ofício, e pelas armas que carregava, a androide sabia que um embate direto seria arriscado.

Prendendo a respiração, esperou que ele se aproximasse mais do animal. Torcia que seus rastros estivessem bem cobertos, e mais importante, que ele não percebesse a corda tesa, oculta por folhagens e galhos secos que ela retirou às pressas das árvores. Contou cada passo, um após o outro, devagar… e a corda se rompeu.

Antes que pudesse entender o que estava acontecendo, o caçador ouviu um estalar de madeira alto, um zumbido de flecha e uma montanha branca de gelo e neve caiu sobre ele. O homem ainda tentou rolar no chão, mas não conseguiu reagir a tempo e ficou soterrado. Cibylla pulou para o chão, sabendo que não tinha o tempo a seu favor, e foi tentar amarrá-lo.

Por muito pouco conseguiu evitar o pior do golpe de um machado na direção da sua perna. Sentiu a lâmina atravessar o couro da bota e chegar à pele, tingindo a neve de vermelho. Não era estranha à dor, mas o ardor do ferimento a colocou em ressalva. Com um golpe preciso do sabre cortou o pulso do caçador, que gritou de dor e quase se engasgou com a neve que lhe entrara pela boca.

A refrega foi rápida. Caído e soterrado, o caçador era um alvo vulnerável. Mas não foi sem esforço que Cibylla o amarrou à árvore. Aproveitando-se do seu tamanho, ele resistia e bufava, e só depois de um golpe bem aplicado entre as pernas ele se limitou a gemer.

— Devo supor que você veio até tão longe pela recompensa, não é?

— Sua puta barata, eu vou acabar com você!

— Você não quer perder o outro olho, quer? — ela se abaixou, encarando o homem. Na mão direita, o sabre ameaçava o pescoço do homenzarrão. Na esquerda, a lâmina da adaga roçava próxima da orelha. Aquela não era a sua voz, o seu tom monocórdico. Era ameaçador, carregado de malícia e frieza. — Ou posso arrancar as falanges dos seus dedos. Com sorte, o gelo e o frio vão estancar seu sangramento, e você poderá fugir. Mas não acho que o resto de sua vida vai ser bem mais difícil…

O homem respondeu com o silêncio, desafiando-a. Uma ameaça não realizada seria vazia e ineficiente, e ela não hesitou. Com uma precisão que ela não sabia possuir, cravou a lâmina menor na parte interna do dedo indicador do sujeito, que berrou de dor e raiva, e depois, gemeu de resignação.

— Há outros… Atrás de vocês. Do mago e da menina. Você é um bônus. Seu… Mestre, Gartoni…

— Eu não tenho mais mestres. E você, homem caolho de nove dedos, vai nos deixar em paz. E vai dar o recado para os outros. Nós não vamos nos curvar à Liga. Está claro?

Depois de alguns segundos, o homem assentiu. A mulher sorriu, um sorriso calculado e cruel. Com o cabo da adaga, desferiu um golpe forte na cabeça do homem, que tombou inconsciente. Sem pressa, embalou os suprimentos, a tenda, e não esqueceu o cavalo, uma ajuda muito bem vinda pelo resto da viagem.

Quando deu por si, guiava o cavalo pelos arreios, com a tenda e os suprimentos amarrados. Ela não sabia explicar o que tinha acontecido, como por alguns momentos ela parecia estar assistindo às suas próprias ações. Seria como um sonho?

Não soube explicar. Quando Konir perguntou onde ela tinha conseguido todas aquelas coisas, ela deu de ombros e disse que não se preocupasse. Ele não tocou no assunto de novo. E no dia seguinte, bem alimentados e aquecidos, seguiram viagem.

O sapo

8 maio

Imagem

Meus pais sempre quiseram uma piscina dentro de casa. Enquanto morávamos em apartamento, esse era um sonho impossível, claro. Então nos mudamos para uma casa, e durante muito tempo, outras prioridades foram se sobrepondo. Quase duas décadas depois, com as facilidades de um cartão de crédito e um dinheiro guardado, eles colocaram uma piscina em casa.

Em seguida, vieram os “acessórios”: umas pedras coloridas das quais não sei o nome, plantas adornando os arredores, cadeiras de plástico para tornar o ambiente mais palatável até para aqueles que não quisessem se aventurar nos profundos cento e cinquenta centímetros de água tratada e clarificada. Como qualquer ambiente de uma casa, com o passar dos anos, a piscina passou a ter sua decoração particular. Até que veio o sapo.

Um sapo de cerâmica de mais de um palmo de altura, com assustadores olhos de bolas de gude. Ele tinha um tom de amarelo doentio, com manchas amarronzadas pelo corpo. “É para dar sorte”, dizia a minha mãe. “Ele é pavoroso”, foi a minha resposta.

Eis que ao sapo recém-chegado é dado um lugar de honra: em uma das pontas da piscina, com o intuito de pregar peças aos desavisados que atravessassem o tanque em um único mergulho e emergissem do outro lado – porque a piscina é pequena assim. A ideia foi minha, admito. E ela me rendeu boas risadas.

“Credo, achei que fosse de verdade”, disse uma tia ao conhecê-lo. Rimos e continuamos. Tornou-se um tipo de tradição “prestar honras” ao sapo, sempre após o primeiro mergulho. Uma espécie de pequeno deus do lar, a escultura parecia aumentar, conforme seu ego era alimentado pelos pequenos gestos de respeito. Ela continuava do mesmo tamanho, claro, mas havia algo de… inquietante.

Afastei-me do ambiente, convencendo-me que guardava muito trabalho para os fins de semana, muitas leituras, ou jogos de vídeo-game. A verdade é que o sapo me deixava desconfortável, como se suas bolas de gude me seguissem pelo ambiente. Para o resto das pessoas, porém, era só um… sapo. De cerâmica. Até que um dia ele se revelou.

Era tarde, tão tarde que já dava para fazer aquela piada de “cedo do outro dia”, mas ainda estava escuro. Depois de me despedir dos meus amigos, fui fechar os portões, com todas as luzes acesas, claro. Quando eu já me afastava do quintal, vi algo ganhando forma com o canto dos olhos.

Pensando ser alguma espécie de intruso, quis verificar, embora qualquer pessoa com bom senso devesse se afastar dali. Puxei um dos espetos de churrasco meio enferrujados que ficavam próximos à porta (“Cuidado! E-eu vou te ameaçar com… tétano?”) e tentei notar, entre a grade já trancada, quem estaria andando no quintal da minha casa, perto da piscina. Pude notar uma forma escura se mexendo entre as plantas, sem fazer barulho algum, porém.

Pensei em dar a volta na casa, mas no tempo que eu levasse para fazer isso, quem quer que estivesse lá poderia ir embora ou, pior, notar minha movimentação. Sem perceber, prendi minha respiração, e segurei o cabo do espeto na tentativa de parar a tremedeira. Qual era mesmo o mantra de Arya? “O medo corta mais do que a espada… coisa nenhuma, o medo te ajuda a manter viva, menina, corre daí!”.

Fiquei, e finalmente consegui divisar o que se mexia na área da piscina. A estatueta do sapo continuava ali, parada, encarando a água que se mexia levemente ao sabor da brisa leve. Atrás dele, uma forma muito mais alta, ultrapassando as paredes da minha casa, levantava-se como se despertando de um sono profundo. As papadas negras de sombra subiam e desciam, subiam e desciam, no mais puro silêncio. O único brilho em todo o corpo da criatura gigante estava nos seus olhos, que refletiam azuis no tanque diante dele.

Paralisada, continuei a observá-lo. O que quer que fosse aquilo, já tinha me notado, como pude atestar pelo olhar que a criatura dirigiu para mim. Abaixando a cabeça, ele me encarou. Engoli em seco, muda de pânico, até que ele saltou. Não desengonçado, como a maioria dos sapos, mas com uma precisão inimaginável para um ser daquele tamanho. Sem peso, ele se apoiou no telhado acima de mim, como se quisesse guiar meu olhar pro verdadeiro perigo que ali espreitava.

Era uma noite sem lua, então eu contava apenas com as estrelas e minhas lentes de míope. No entanto, uma forma de asas e patas que pareciam querer agarrar a minha casa, como uma ave predatória, fazia voos em círculo. O sapo estava dando combate à outra forma, e, assim, protegendo a nossa casa.

Corri para o jardim, de onde eu esperava ter uma visão melhor. Sem saber exatamente o porquê, ainda segurava o espeto de churrasco, mas as duas formas de sombra travavam sua luta na altura da viga mais alta da casa. Assustada e fascinada, tentei escalar o muro, para ficar numa altura mais próxima do telhado, mas quando estava a meio caminho de subi-lo, senti uma presença cair no jardim de grama orvalhada.

De alguma forma que eu não consegui entender, o sapo havia se engalfinhado com o pássaro, e a luta estava feroz. O invasor parecia se mexer de maneira convulsiva, enquanto o outro tentava sufocá-lo de alguma forma. Encolhida contra o muro, não podia tentar sair dali, correndo o risco de ser atingida no meio do combate. Afinal, o que eu poderia fazer?

O sapo soltou uma espécie de coaxar alto quando o bico da criatura o atingiu no olho, e o anfíbio, talvez em dor, libertou seu inimigo do abraço. O pássaro, porém, já devia estar bastante machucado, e levantou um voo desengonçado, desaparecendo no céu escuro. Quando desci o olhar de volta para a casa, vi o sapo saltar de volta para o telhado, e depois desaparecer, provavelmente retornando para seu invólucro de cerâmica.

Ofegante, fechei todos os portões, deixei o espeto em cima da mesa e fui para o quarto. Dormi vencida pelo cansaço, e, no outro dia, relutei em ir para o quintal, embora já acreditasse que tudo não tivesse passado de um sonho muito estranho. Já quase esquecera do evento quando ouvi minha mãe dizer:

– Ué, cadê o olho do sapo? Filha, cê viu ele por aí?

Talking Bad – minha jornada com Walter White

11 fev

{Aviso de conteúdo: palavrões, spoilers, movie stuff e provavelmente algo que pode incomodar mas que eu não estou conseguindo lembrar agora, como opiniões}

Fazendo já clara referência e homenagem à série que eu acabei de assistir (pra não dizer que foi um plágio descarado, porque “Talking Bad” foi o nome do programa exibido depois do final da série, que eu não cheguei a ver), resolvi esboçar alguns dizeres nem um pouco acadêmicos sobre Breaking Bad, série de TV produzida pela AMC, criada por Vince Gilligan e cujo título não me atrevo a traduzir. A não ser que fosse algo como “Tocando o foda-se”.

Breaking-Bad-Heisenberg

Imagine a trilha de abertura tocando agora. Não, eu não vou imitar.

Apesar de toda a divulgação e a empolgação de vários amigos sobre a série, demorei a começar a ver por motivos que eu não saberia rastrear. E acho que um dito popular não poderia ser melhor aplicado como “tudo a seu tempo”. Comecei a ver quando tinha que ser. Se tivesse acompanhado a série conforme os episódios iam ao ar, talvez não tivesse terminado.

Breaking Bad demora um tanto para acordar você, como aquele dia que você sai de casa morrendo de preguiça de caminhar, e aos poucos, acostumado à ideia de estar acordado, começa a seguir seu passo habitual, às vezes apressado, às vezes apenas mantendo-o para chegar no momento certo. E seu caráter dramático não é aquele que faz você pular da cadeira a cada episódio – é um drama cotidiano, prosaico, quase privado, familiar. Fala de corrupção pessoal, de mudança e perda de valores, sobre justificativas e motivações, e, principalmente, sobre até que ponto somos capazes de aceitar os malfeitos de alguém quando eles nos parecerem justificados o bastante. Breaking Bad, como sua principal metáfora – a química, é sobre mudanças.

Apiedei-me do drama de Walter: diagnosticado com câncer em um país onde não existe saúde pública, ele sente que, além das esperanças mínimas de sobrevivência, deixará sua família na falência financeira. Como maneira de conseguir fazer dinheiro e deixá-los em relativa estabilidade, o professor de química pensa em fabricar metafetamina. Para isso, ele se associa com um ex-aluno seu, o jovem viciado em drogas Jesse. A partir daí, tentando levar uma vida dupla, os problemas começam a se relacionarem e a escalarem a pontos inimagináveis no início da narrativa. E desse processo, ninguém sai incólume.

Breaking Bad apresenta, com o passar das temporadas, peças soltas de um quebra-cabeça que, ao final, se encaixam com precisão e naturalidade. Diferente de um encaixe perfeito, no entanto, ele se parece mais como um mosaico meio opaco em três dimensões: pedaços irregulares formando um todo complexo e multifacetado, com tons que mudam conforme o ângulo do qual se vê, e faces que se ocultam e se mostram de acordo com o lado que o espectador olha.

E falando sobre ângulos, há o rico aspecto técnico: ângulos criativos e simbólicos, que falam mais de uma situação do que seus próprios personagens; pontos de vista inusitados, como o de um galão de gasolina encarando seu portador Walter em um contra-plongée, entre outros. Já vi textos que comparam a linguagem de Breaking Bad com o cinema, mas sem a pasteurização habitual da TV, e acho que devo concordar. Há planos poderosos, em que o visto fala muito mais do que qualquer texto, como o meio rosto de um bebê em prantos se escondendo apavorado com você, espectador. Há omissões necessárias, em que mortes são explícitas, mas somos poupados de vê-las. Há outras, porém, chocantes e muito claras, que, assim como ao protagonista manipulador, têm um claro propósito de mandar uma mensagem, mostrando a que a série veio.

E conforme a série evolui, seus feitos escalam. Novos personagens aparecem, outros se quebram, alguns se regeneram. Walter White passa por tantos tons morais que, ao final, você sabe que ele é qualquer coisa, exceto puro como seu nome poderia indicar, assim como nós, que não somos nem bons, nem maus.  Depois da piedade ao protagonista, depois do reconhecimento de sua coragem ao fazer sua primeira vítima, por suas próprias mãos – porque, ao meu ver, para tirar a vida de alguém é necessário muita coragem – veio a raiva. Tive a percepção que ele seguiu no tráfico porque queria, porque gostava. E como eu o detestei por isso, Walter White. Como o odiei, como nutri raiva pelos estragos que você fez com aqueles ao seu redor pelo orgulho não-admitido.

breaking-bad-all-characters

Voltei meu carinho, então, aos outros personagens. Sua esposa, Skyler – e até ela me decepcionou com uma frase demolidora, embora suas razões estivessem claras como cristal -, seu cunhado, Hank. Jesse, o personagem que mais chorou na série inteira, e, surpreendentemente, o mais capaz de empatizar com os outros. O adolescente incapaz de largar seus vícios costumava ser o anjo da consciência, que lembrava vez ou outra: “precisamos fazer isso?”. E mesmo essas pessoas não eram infalíveis. Assim, também, como nós.

E veio o final, uma montanha russa sempre decadente de consequências naturais aos atos. Quantas vezes não gritei em pensamentos – e até verbalizei – “Alguém, por favor, mate Walter!”? Até que Hank, o policial gordinho e careca, deu-me a resposta: “Ele não pode se livrar tão fácil assim”. E não se livrou. Ao final, porém, ainda me pergunto se Walter White me ganhou de volta. No único momento em que ele nos fala a verdade, a total verdade sobre si mesmo, não sei me posicionar sobre sua redenção – se é que há alguma redenção. Mas a jornada chegou ao fim, e a mim, cabe apenas matutar a respeito. Quem sabe, um dia, eu consiga discernir meus próprios sentimentos em relação a Walter White.

A morte da autora

26 jan

Imagem

– E então, o que fazemos agora?

Katiane olhou para aqueles ao seu redor. Nem em um milhão de anos teria pensado em uma reunião tão bizarra – e ela que achava que a sua história era bizarra, inconsciente e sem sentido. Na sua frente, a mulher de cabelos castanhos, óculos quadrados e roupas de pelo menos cinco anos jazia inconsciente. Estava completamente à mercê deles.

– Peraí, a gente não vai dar uma de Frankenstein, né? – perguntou uma outra, que afastava o cigarro fumegante com um braço metálico. Vinha de uma história de ficção científica cyberpunk, e tinha um nome que parecia uma onomatopéia. – Aquela besteira toda de se voltar contra o criador e tudo o mais?

– Frankenstein não era o monstro, era o cientista – corrigiu Katiane, impaciente. – Não me pergunte como eu sei disso, ok? Só fui escrita assim.

– Apesar de eu adorar o tropo literário criatura contra criador, – uma voz suave levantou-se, e uma moça loira, jovem e muito bela saiu das sombras. Nas mãos, ela trazia uma pequena harpa, e no rosto, estava armada de um sorriso plácido. – eu não acredito que esse deveria ser nosso caminho. Alguém nessa assembleia se perguntou o que aconteceria conosco se ela perecesse? Afinal, somos criações dela, e só existimos aqui, não?

Um momento de silêncio, enquanto a moça se sentava, triunfante. Mais seres, entre outras mulheres, ora usando armaduras de metal, alguns poucos homens, e outras criaturas que pareciam ter saído de algum compêndio bizarro se aglomeravam. Como cabia tanta gente na cabeça daquela mulher?

– Eu acho que a gente faz “puf”, né? Tipo, desaparece, zé-fi-ni?

– Seria c’est fini – uma outra moça, de formas arredondadas, apareceu do nada. Ela guardava uma semelhança assustadora com a mulher adormecida, embora tivesse uma aparência catunesca. – Eu aprendi umas palavras em francês, e pareço legal, mas sou revisora. Ei, não me olhem assim, vocês realmente achavam que ela não tinha uma espécie de auto-representação na cabeça dela? Quem vocês acham que organiza essa bagunça toda aqui? Fantasmas invisíveis?
– Ei, senti uma pontada de preconceito contra nós, seres incorpóreos. Temos nosso espaço aqui também!

E a algazarra começou. Problemas começaram a ser comparados – o tempo em inatividade de cada um, esquecidos naquele multiverso variado e sempre inacabado; os péssimos textos escritos, ou aqueles que tinham ainda seu valor; os que foram reescritos e revisados se colocando acima dos outros, abandonados ainda em forma de rascunho. Os ânimos se exaltavam, a algazarra aumentava e antes que se alguém tentasse argumentar, uma horda de personagens fictícios marcharam em direção à mulher que dormia um sono leve.

Pararam diante dela, incertos. Valeria a pena? E o que aconteceria com eles? Estar em um limbo de personagens não escritos seria um destino melhor do que uma espécie de pós-vida de ficções perdidas?

Não seria dessa vez que descobririam.

—–

– Eu tenho certeza de que não foi isso que Roland Barthes quis dizer com “A Morte do Autor”. Mas fica a referência e a recomendação aí pra quem interessar.

– Que 2014 seja um ano criativo. E melhor que esse texto (o que não deve ser muito difícil).

– Créditos da imagem: desenhos de Camilla Guedes.  (portfolio)

Tag/Meme/Caderno de perguntas.

6 mar

Oi, tudo bem? Como vão vocês?

O lugar, claro, está um lixo. Recoberto de teias de aranhas e, se eu procurar bastante, vou achar umas traças e outros bichos desagradáveis por aí.

Como fui obrigada ameaçada coagida persuadida a seguir esse meme por uma *insira aqui palavras de baixo calão* amiga, resolvi aparecer e postar umas perguntinhas básicas e irrelevantes sobre o blog, que eu não atualizo a eras geológicas.

1- Qual o nome do seu blog? E que assuntos ele aborda?

Brainsstorm, com SS, porque algum sacana pegou esse domínio do wordpress e nunca atualizou. Aborda qualquer coisa que eu ache conveniente, entre os quais destaco literatura, cinema, opiniões irrelevantes sobre o resto mundo e afins.

2- Como escolheu o nome do blog?

Ideia de um amigo meu, Italo. Eu ia usar algo bem clichê, como Mais um blog de Allana, mas ele achou que Brainstorm parecia comigo. E cá estamos.

3- Porque você criou o blog?

Se eu descobrir, aviso.

Ok. Eu queria um espaço meu, que não dependesse de nenhuma “linha editorial”, e que eu pudesse fazer uma das coisas que eu mais gosto da vida, que é escrever. Sobre o que quer que eu quisesse. E apesar de eu abandoná-lo a maior parte do tempo, vem funcionando razoavelmente bem.

4- Onde você encontra inspiração para as postagens do blog?

Atualmente, em lugar nenhum. Se eu encontrasse, postaria mais, creiam.

5- Qual o público que mais acessa o seu blog, masculino ou feminino?

Não tenho a menor ideia. E nem faço muita questão de saber, na verdade.

6- Além do blog exerce outra atividade? Se sim, qual?

Sou secretária executiva na UFPB, recentemente ingressei no doutorado em Letras pela mesma instituição, sou leitora carnívora de romances, livros e quadrinhos, jogo RPG, tento manter uma rotina de exercícios, criadora de mundos utópicos, e presidente de uma associação imaginária de personagens de ficção. Ok, a última é mentira.

7- Em quais redes sociais você divulga o seu blog?

Facebook e Twitter, em caráter muito eventual.

8- Quando você começou o blog, enfrentou algum tipo de problema?

Nos primórdios da blogagem, tive medo de me expor muito. Hoje ainda enfrento um tanto disso, mas é muito mais paranoia que outra coisa.

9- Atualmente, qual a sua dificuldade em manter o blog?

Assunto, inspiração e tempo. Não nessa ordem.

10- Você incentiva outros blogs que estão começando, escrevendo comentários positivos ou inscrevendo-se no blog?

Sinto que deveria, mas não. Raramente comento por não achar que aquilo vale a pena ser dito.

11- Como você administra o seu tempo para poder dedicar-se ao blog?

“Se dedicar ao blog” e “Allana” numa mesma frase, não existe.

12- Ser blogueira é uma profissão?

Tem quem diga que é, né? Não pra mim, definitivamente. Não teria a disciplina ou a criativade de fazer disso uma profissão decente.

13- Como você lida com as críticas?

Normalmente, bem. Mas ando muito desgastada de discussões, então, se eu tiver contato privado com a pessoa, costumo levar uma boa conversa.

14- Qual a sua experiência mais agradável e a sua experiência mais desagradável em relação ao blog?

As agradáveis são sempre relativas aos comentários dos textos de ficção que eu escrevo. Gosto de feedback, gosto de ver as impressões dos leitores compartilhadas. Mas a verdade é que eu sou péssima de marketing pessoal, e não sei bem como fazer isso. xD Quanto às desagradáveis, não teve nada que valha a pena comentar, mas não estou isenta delas.

E eu vou poupar as gerações futuras de repassar isso para alguém. :p

Errar é humanas. Permanecer no erro é exatas.

5 out

Tropecei essa semana nessa notícia, e fiquei matutando aquilo no meu tempo livre. Não discordo dos dados apresentados, nem da necessidade de mão de obra qualificada nas áreas de ciências exatas que se configura no país, mas o que me assombraram foram os comentários.

“Interpretar um texto é mais fácil que resolver uma equação matemática”

Vejam essa pérola da sabedoria! Parafraseando uma amiga, então fale-me mais sobre a qualidade infalível da nossa educação hoje em dia. Interpretar um texto é, certamente, mais fácil para mim, que, além de ter uma grande afinidade com a área, tem também alguma experiência no assunto.  E, preciso salientar, sempre tive uma enorme dificuldade em desenvolver raciocínios lógico-matemáticos, desde os primeiros anos de estudo.

Não, eu não acredito em talento nato. Ninguém nasce sabendo de nada, seja desenhar, cantar, dançar ou escrever. No entanto, todos temos afinidades, áreas que nos interessam mais e que nas quais vamos procurar desenvolver melhor nossas aptidões.

E, pasmem, há não muito tempo atrás eu cheguei a soltar uma pérola de sabedoria semelhante, mas no sentido contrário. “Em exatas você sabe o que esperar; ou você chega naquele resultado ou não. Em humanas, não é assim. Você faz e torce para estar certo”. Daí levei um tapa na cara moral de um amigo (que dificilmente vai lembrar dessa conversa) e me toquei da bobagem que estava dizendo.

Hoje agradeço por haver pessoas interessadas e dedicadas na área de exatas, que me permitem usar os produtos inventados por elas. Assim como agradeço aos pedagogos, com seus estudos sobre o ensino; aos historiadores, que desencavam essas coisas tão legais e interessantes de se estudar; dentre outros. E destaco: profissionais qualificados são importantes em qualquer área: letras, sociologia, antropologia, história, física, matemática, engenharia, computação e tantas outras. E um profissional qualificado não dominará apenas a sua área de conhecimento. De que adianta um programador que não saiba escrever um e-mail para um cliente? E não adianta dizer que, por escrever em Java, você não precisa conseguir se expressar. Tenho medo do dia em que você for tentar vender um produto dentro de uma empresa.

Lembro-me também de uma outra conversa, essa há (minha nossa!) quase 10 anos atrás, quando eu passei no vestibular para Letras. “Mas, Allana… Letras?”. Eu dei de ombros e sorri: “É, eu sei, vou ser professora e pobre”. E véi, na boa, não me arrependo não. E até onde eu sei, nem os alunos que tropeçaram em mim no caminho.

O que eu gosto em um livro

17 jul

Não raramente, colegas e amigos recorrem a mim para recomendar (ou não) esse ou aquele livro. Não posso mentir que isso me deixa feliz e lisonjeada. Lisonjeada por alguém me considerar como algum tipo de referência em alguma coisa, e feliz por poder recomendar livros dos quais realmente gostei, ou poder descascar alguns que realmente não valem o tempo investido na leitura.

Mas certo dia, isso me fez pensar: e o que me faz gostar de um livro? Ou, talvez o mais importante, o que me faz detestá-lo? Conhecer nossos critérios de avaliação diz um bocado sobre nós mesmos. Então, cheguei, mais ou menos, a essas conclusões.

1. Linguagem

Talvez por força da profissão, um livro me ganha logo de cara se ele tiver algum trabalho interessante de linguagem. Costumo dizer que leio livros ruins se forem bem escritos, mas não consigo terminar um mediano/bom se não me interessar pelo trabalho de texto do autor. Isso pode soar meio elitista, mas eu penso que a leitura (com exceção daquelas obrigatórias) deve ser prazerosa. A utilização de metáforas, ou muitas vezes um jeito diferente de expressar esse ou aquele personagem, são coisas que me fazem ter o prazer de passar as páginas e chegar ao desfecho de um livro.

Exemplo disso pra mim é Stephen King, e até mesmo J. K. Rowling. King não é assim tão original nas suas tramas de terror; há elementos ali presentes em diversos livros dele, como a casa mal assombrada, o escritor com bloqueio criativo, o pequeno povoado isolado de tudo. Você não precisa ir até o fim para realmente saber como vai terminar. No entanto seu domínio de narrativa, de fechadas de capítulos (cliffhangers!) é muito bom. Dos livros que li dele, devorei quase todos. Mas não posso dizer, nem de longe, que são os melhores que li.

2. Personagens

Um livro ruim pode se salvar pelos seus personagens, se eles forem… cativantes o bastante. Personagens bons podem levar uma história ruim, em qualquer mídia. Quem nunca assistiu um filme ruim até o final para saber o destino de um personagem X? Isso, eu acredito, se dá por vários fatores, entre eles a identificação e a verossimilhança de um personagem conforme sua construção pelo autor.

Como o Batman, seja nos quadrinhos ou nos filmes (não os últimos do Nolan, devemos ressaltar). Cansei de contar os filmes sofríveis que o homem-morcego me fez passar, ou as histórias ruins das revistas mensais. Mas ele, na mão de escritores certos, tem tanto o que falar e identificar, que eu suporto, como toda fangirl.

Personagens ruins também podem comprometer um bom trabalho de escrita e de trama. Podemos tirar como exemplo o protagonista Shadow, de Deuses Americanos (Neil Gaiman; livro muito bom, por sinal): bidimensional, pouco motivado, que perto dos seus coadjuvantes, perde totalmente o brilho.

3. Ritmo

Ritmo narrativo, pra mim, é uma coisa difícil de explicar e definir. Nossa geração, no geral, é acostumada à fórmula de ritmo do cinema hollywoodiano (herói parte pra aventura, seja de bom grado ou de forma traumática – momentos de explicação e descoberta, onde o vilão é apresentado – evolução do herói – herói derrota grande mal, clímax da narrativa – epílogo), o que pode causar estranhamento quando lida com narrativas mais fragmentadas, ou que não seguem bem essa estrutura. Certamente esse não é meu problema.

Mas um livro, assim como qualquer outra mídia de entretenimento, precisa “se vender”. Então, por mais paciente que seja o leitor, ele não vai esperar até a página 150 de um romance de 430 páginas para “as coisas começarem a acontecer”. E esse é realmente um ponto importante para mim enquanto leitora. A narrativa pode ser cadenciada, lenta e quase se arrastando, mas é necessário que ela “ande”. Gosto de ter a ideia de que alcancei alguma coisa ao fim de um capítulo, ou de um arco de capítulos.

Um exemplo feliz nesse sentido é Patrick Rothfuss, autor d’As Crônicas do Matador do Rei. Ainda estou lendo o primeiro livro, O nome do vento, mas posso dizer que ele tem um bom personagem (que é um super-homem no sentido de que ele faz de tudo um pouco, mas ainda assim é humano o bastante), um ótimo trabalho de linguagem e um ritmo bem arrastado, mas que nos passa a impressão de que as coisas estão acontecendo, apesar de ter um início demorado.

4. Trama

Pra mim, a trama muitas vezes pode ser mediana para ruim, desde que os outros elementos estejam presentes. Claro que um livro bem escrito, com bons personagens, bem cadenciado e com uma trama bem feita e amarrada é um ótimo investimento de tempo e dinheiro, mas sou honesta em dizer que poucos são assim. Mesmo entre os meus livros preferidos eu posso citar pontos nos quais eles podiam ser melhores (porque eles sempre podem).

Não que a trama deva ser considerada como um elemento menor por qualquer autor, muito pelo contrário. Mas o fato é que eu, como leitora/espectadora, estou disposta a fazer vista grossa para pontos não tão importantes em uma história se outros aspectos me chamarem muito a atenção.

E vocês? Conseguem ler um livro mal escrito se ele tiver uma boa história? Quais elementos chamam a atenção quando avaliam um texto?

Projeto “Adaptação e Leitura”: update #001

29 jun

Como, há alguns meses, postei por aqui uns esboços sobre uma ideia que estava me encafifando e algumas pessoas se interessaram, aqui vão alguns updates do projeto Adaptação e Leitura (rá, arrumei um nome. Não é um bom nome, mas é um nome de qualquer forma).

Como vocês se lembram (ou não), a ideia era, na etapa final, integrar o RPG, através do título Fiasco (publicado no Brasil pela Retropunk). Embora eu não tenha planos de usar os cenários oficiais, mas sim criar um mais adequado, eu ainda pretendo fazer isso, mas não sei se será possível, graças a dois fatores. Um deles, bem objetivo, é o tempo – as reuniões estão ocorrendo quinzenalmente, ao invés de semanalmente (por motivos de ambas as partes, meus e das alunas envolvidas), o que atrapalha um pouco o andamento. O outro, mais subjetivo, vou desenvolver aqui. Talvez uma alma iluminada possa me dar alguma sugestão.

Os primeiros encontros foram, na melhor das hipóteses, desanimadores. Vimos o filme (eu escolhi o Jogos Vorazes, Gary Ross, 2012, por achar que seria mais fácil guiar uma discussão no sentido de crítica às mídias de massa, e daí levar por um lado mais político/social) e a conversa posterior foi… superficial. As leituras não passavam do nível da narrativa, os elementos levantados como mais importantes também não passavam disso. Na melhor parte, houve uma comparação com Crepúsculo (ponto pra mim, pelo menos elas preferiram  Catniss a Bella).

Impossível dizer que não bateu aquele desânimo. Mas no caminho para casa (os ônibus e sua capacidade de fazer a gente pensar), ponderei algumas coisas e relativizei a situação: são crianças com um baixo nível de leitura, e que o contato com narrativas, na maioria das vezes, se limita a telenovelas e uns poucos textos das aulas de português. E elas estavam se esforçando, isso era notório. Então, nada mais justo e eu me esforçar também.

No encontro seguinte, peguei em um ponto do filme que acho particularmente interessante enquanto pessoa, e, por que não dizer, feminista (spoiler, mas só um pouquinho): “Ele está fazendo você parecer desejável, e isso atrai patrocinadores”, disse Haymitch, o mentor do casal protagonista. E assim, as coisas avançaram, passando pela representação do feminino/masculino em anúncios, consumismo e os papéis desenvolvidos pelas mulheres socialmente. E daí, a discussão fluiu melhor. Talvez por só haver meninas na faixa etária dos 13-14 anos, tenha sido mais fácil.

Agora, voltando ao segundo fator, que tem a ver com o RPG, lááá em cima no texto. Como eu disse no primeiro encontro com as alunas, eu quero formar leitores melhores (itálico para designar aquele efeito de destaque na voz). Quero pensar que, ano que vem, quando elas estiverem no ensino médio, elas possam se deparar com um texto e visualizar seus intertextos, seus subtextos. “Ler as entrelinhas”, como se diz por aí. Detectar as sutilezas do discurso jornalístico, as técnicas de argumentação, e usá-las, claro, ao seu favor no enriquecimento do senso crítico.

Certo, eu sou professora de português, é parte do meu trabalho querer isso. E a ideia de usar o RPG era, sim, incitar o lado lúdico, criativo, que também acho que seria de forte atuação no sentido de instigar o senso de leitura além das letras de um texto. Mas também há de se considerar a recepção do público à ideia. As discussões com as garotas estão claramente melhorando, mas não sei se a criação de uma história coletiva teria tanto sucesso.

Mas talvez eu esteja errada, e só fazendo tempestade em copo d’água. Terminada a leitura do primeiro livro,  Jogos Vorazes (Suzanne Collins, Rocco Jovens Leitores), pretendo propor, inicialmente, uma redação. Dependendo de como as coisas acontecerem, vamos experimentando. E aí, como eu gosto de dizer, “a gente vê o que faz”.

Cinco músicas ruins que eu gosto

8 maio

Baseando-me em um post de Vinícius, resolvi compartilhar meu terrível gosto musical enumerando as cinco piores músicas que eu gosto. Sei que todo mundo tem isso, por mais que não tenha coragem de admitir: existe aquela música que assombra seu celular, ou sua playlist no computador, e você não tem coragem de exorcizá-la porque gosta dela de verdade.

Certo? Certo? Não…? Okay… .__.

1. Livin la vida loca – Ricky Martin

Quem me trouxe essa música de volta dos confis obscuros da adolescência foi Shrek 2, há uns bons anos atrás. Daí é uma presença mais ou menos constante na minha playlist. Pela batida, pelo ritmo, pela mistura tosca de espanhol com inglês.

2. Everybody’s fool – Evanescence

Outra música zumbi dos recônditos dos anos teen. A verdade é que tem outras músicas do primeiro CD de Evanescence que escuto até hoje, mas como queria ampliar meu leque de músicas ruins, resolvi usar essa como exemplo.

3. Cities of the future – Infected Mushroom

Essa música, pra mim, representa todo um feeling cyberpunk: a batida rápida, as variações de ritmo, e serve de trilha sonora perfeita pra maioria das coisas cyberpunk que eu leio. E o pedacinho de letra dela também tem tudo a ver. Mas que eu não veria isso ao vivo, hmn, não veria.

E convenhamos, não é todo mundo que curte um psytrance loucão, né?

4. Driving to nowhere – Hadouken

Piadas a parte (Shoryuken!), conheci essa banda através do meu namorado, Nino, e é outra que não sai dos dispositivos móveis. Eu não sei se é exatamente ruim, mas como música eletrônica sofre diversos tipos de ojeriza randômicas, resolvi listá-la aqui. Gosto do ritmo, da batida, e penso em pelo menos três começos de pequenos contos quando escuto essa. Um dia escrevo.

5. Girl’s not grey – AFI

Porque eu gosto de cantar arruinar essa música no Rock Band.

UPDATE:

6. Miss Independent – Ne-Yo

Gosto de clipes com historinha, gosto de músicas com uma batida diferente, e não costumo gostar de rap e adjacências musicais. Mas tenho um irmão mais novo (aquele que você sempre culpa por quebrar o que quer que seja na sua casa) que tem um gosto um tanto terrível diferente do meu. E entre os cantores do ramo, gosto de pensar que Ne-Yo é o menos mal. Na verdade, isso é só desculpa e eu gosto dessa música.

7. Killing Loneliness – H.I.M.

Traduz essa música e Reginaldo Rossi canta lindamente, ao lado de Joelma do Calypso. E olha pra esse cara. Precisa de mais?

8. Head up high – Firewind

Jogue algumas palavras-chave num saco, balance, puxe algumas e você tem uma música de Firewind (que foi muito feliz em um cover de Maniac). Certeza que eles fizeram álbuns inteiros assim, brincando de Bingo do Metal.

9. Savior – Rise Against

A vantagem de ouvir Rise Against é desligar o cérebro e deixar tocar no player aleatoriamente. As músicas são todas iguais, não? E alguém pode me dizer qual é a da polga de bichos de pelúcia?

10. Misery Business – Paramore

Quanto mais eu vejo esse clipe, menos sentido ele faz. É um ciclo vicioso, certeza.

Celulares e a invasão de privacidade

12 abr

Verdade seja dita, nunca gostei muito de celulares. Quando comecei a trabalhar – e, por conseguinte, passar o dia fora de casa, numa fase tão tosca idílica que é a adolescência – meus pais tentaram me empurrar um aparelho herdado por eles. Foi um hábito difícil de adquirir: eu esquecia o bendito em casa, desligava para assistir às aulas e esquecia de ligar quando saía, colocava no silencioso e não lembrava de olhá-lo…

Tudo bem que o aparelho era um trambolho: ele já estava ultrapassado quando me passaram a herança. Tecnologia, essa danadinha, sempre fazendo você desejar o último lançamento do que quer que seja. Mas não era por uma vaidade adolescente imbecil (bem, eu era adolescente, e certamente era imbecil, mas não a esse ponto). O que eu realmente detestava era a capacidade que o celular dava aos outros de me encontrar em qualquer lugar, a qualquer momento, e a suposta obrigação em atendê-lo.

Eu, menina revolucionária, via apenas a opressão naquilo, e as reclamações de quando eu não atendia celular. Os perigos do mundo exterior não tinham entrado ainda na cabecinha vazia – é fácil passar o dia fora, experimentar alguma liberdade e não avisar aos pais que você vai sair com uns colegas de sala para almoçar. Na minha mente simplista, todo mundo sabia onde eu estava: ou no trabalho, ou na escola, ou em casa. Não me ocorria que, caso eu passasse mal, sofresse algum acidente ou qualquer coisa parecida, podia ligar para os meus pais chorando e pedindo para alguém me buscar. Pensava no celular como um invasor do espaço individual, e continuo achando.

Evito ligar para pessoas porque, intimamente, sinto estar incomodando. Sou eu quem quer falar com você, e não o contrário. Essa pessoa pode estar dormindo, divagando no banheiro, tendo momentos íntimos com namorado(a), e tá lá o bendito do celular tocando. Ligo para meus chefes porque não tenho lá muita escolha (questões urgentes que demandam a comunicação, por exemplo), e porque eles me deram essa liberdade. Mas não o faço de bom grado, e posso listar diversos exemplos.

Já me ligaram de duas e meia da manhã (me acordando de um sono muito bom, devo destacar) alegando que tinham anotado meu número em um programa de rádio. Obviamente mentira. Ou o sujeito tinha trocado um dígito e a azarada fui eu, ou é algum infeliz sem coração para ligar de madrugada para mim. Pior foi saber que, depois de umas frases mal educadas, ele ainda insistiu em me ligar. Salvei o número como “Não atenda nem no apocalipse zumbi” e passei a ignorar as chamadas.

(Tenho alguns números salvos na agenda com alcunhas semelhantes, como “Cara chato vendedor de seguros”. Nem lembro de todas as ocorrências, mas quando vejo um “não atenda”, silencio o toque e continuo a fazer o que quer que eu esteja fazendo. E vivo muito bem, obrigada).

Uma colega já deu meu número como referência para o financiamento do carro, e me ligou por volta das seis da manhã de um sábado para informar o fato. Mais uma vez, eu estava dormindo, e de uma daquelas noites bem tardias. Sorte dela que a financeira nunca resolveu me ligar; de vingança, diria que nunca a vi na vida. Ou que era uma caloteira, coisa parecida. Seria criativa.

Há ainda os cassos clássicos que de tão corriqueiros aprendemos a ignorar: no cinema, na aula, e longe da sua casinha de sapê. No meio de uma reunião, você esquece de ativar o modo silencioso e o tema de Game of Thrones toca nas alturas. Seu chefe, simpático, pergunta: “Ah, você assiste também?”. Incovenientes cotidianos que minam sua boa vontade e seu bom humor. Pelo menos, o meu bom humor.

Há quem diga que isso é falta de educação. Penso que, na verdade, a fina arte da etiqueta não estava pronta para receber essa possibilidade de conexão entre as pessoas, tão imediata, tão possível em qualquer lugar. Mas consensos surgem a partir de necessidades, não de possibilidades. E se não começarmos a nos policiar, a tendência é sempre piorar.